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terça-feira, 1 de junho de 2010

Entrevista com Maria da Penha ‘A Constituição continua machista’

Aos 38 anos, em 1983, ela sofreu um tiro nas costas, deflagrado pelo próprio marido, o professor universitário Marco Afonso Herreira Viveiros, e ficou paraplégica. Uma semana depois, um outro atentado - por choque elétrico - fez que Maria da Penha Marco Fernandes saísse de casa. A história dita por Herreira foi de que a mulher teria sido vítima de tentativa de assalto e essa versão durou cinco meses, até a Polícia descobrir o que realmente tinha acontecido. A prisão do professor, contudo, ocorreu 19 anos e seis meses depois da violência praticada contra Maria da Penha, em 2002, isso mesmo depois de o governo brasileiro ter sido julgado culpado pela ausência de políticas voltadas à defesa da mulher. Em 2006, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei Maria da Penha, cujo preceito se volta à aplicação de medidas favoráveis ao universo feminino. 25 anos depois do atentado, a mulher, que hoje tem 63 anos e mora em Fortaleza (CE), é beneficiada com uma indenização do Estado, aprovada pela Assembléia Legislativa do Ceará, no valor de R$ 60 mil, pela ausência do governo no caso específico. Nesta entrevista, Maria da Penha relata sua experiência, discorrendo sobre políticas voltadas para as mulheres, e critica a Constituição. "A Constituição ainda continua machista", afirma.

JORNAL DE FATO - 25 anos depois de ter sido vítima da agressão, a Assembléia Legislativa do Ceará aprovou indenização de R$ 60 mil, a ser paga pelo Governo do Estado. Como a senhora vê esse tempo levado para que as autoridades reconhecessem a ausência do Estado em políticas voltadas para a mulher?
MARIA DA PENHA - Essa indenização não é porque fui agressiva, e sim porque foi altamente moroso e recursos fora do prazo que foram aceitos pelo Poder Judiciário... E isso se constitui em um absurdo, uma aberração, uma política de continuar a impunidade aos agressores... Porque o Brasil, o Estado cearense, se comportou dessa maneira, tendo o meu caso como exemplo, porque a denúncia partiu de mim, e por isso o Brasil foi condenado a pagar essa indenização. Isso resgata o erro que foi feito para comigo.

ENTÃO foi um erro do Estado?
EXATAMENTE, com relação à política de enfrentamento da violência doméstica em relação ao comportamento do Judiciário acerca da punição dos agressores.

E COMO se chegou à essa realidade?
FOI constatado, no relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA), que apenas 2% dos agressores de mulheres chegavam a ser punidos e que não havia interesse do Estado e do Judiciário em diminuir esse índice, entendeu? É muito pequeno o número de agressores punidos, e então tinha que aumentar essa punição, e não havia interesse do Estado nesse sentido e (predominava) só o descaso da violência contra a mulher.

POR que a senhora vai receber essa indenização?
VOU receber a indenização em virtude do meu trabalho. Ficou constatado que o Brasil era inoperante, que o Poder Judiciário brasileiro era inoperante.

VOLTANDO 25 anos no tempo, como a senhora se viu diante da situação, de vítima de atentado do próprio marido, e como a senhora se sentiu com a falta de política de apoio à mulher vítima de agressão?
COMO toda mulher vítima de violência, me senti abandonada pelo poder público e ficava na orfandade. Nada era feito e as coisas ficavam paradas... Acho que essa reviravolta foi o que de mais importante aconteceu. Estou satisfeita, não por ter sido feita justiça no meu caso, com relação ao agressor. Não considero a prisão dele como sendo um ato justo. Foi porque demorou 19 anos e seis meses e ele só foi preso por (causa de) pressões internacionais. Sinto-me satisfeita e recompensada, na minha luta, por ter conseguido uma lei, que vem a atender à representação da OEA...

COMO a senhora avalia o fato de a mulher, de ser esposa e ter relação afetiva grande com o marido, possuir bom grau de instrução, se sentir presa nos momentos de agressão? Como a senhora se sentia na época?
É A tal da coisa, de não existir nada que favorecesse à mulher para que se denunciasse. Nem Delegacia da Mulher existia no Brasil. A primeira delegacia foi criada em 1986...
DEPOIS do seu caso...
É. NA época que fui agredida, estava começando a visibilidade da violência doméstica, e à custa de muitos esforços de movimentos de mulheres... Então, aconteceu a primeira delegacia... Não era medo de denunciar, e sim, não ter nada que protegesse a mulher, que a fizesse acreditar nas instituições e denunciar, como ainda hoje acontece, apesar de a lei (Maria da Penha) existir. Nos municípios, onde os dirigentes não têm a sensibilidade de criar equipamentos que a lei determina, essa mulher não vai ter uma delegacia para apoiá-la, um centro de referência que possa esclarecer seus direitos... Essa mulher não terá uma casa-abrigo e nem vai ter um Juizado contra a violência doméstica que possa atender a demanda no prazo de, no máximo, 48 horas.

E COMO a senhora vê os locais onde esses equipamentos existem?
A LEI existe nos locais onde existem os equipamentos. Tenho referência boa da Vara Criminal de Mossoró, que respeita bem esse prazo, e tem um juiz responsável pelos casos de violência doméstica. Estive em Mossoró e fiquei satisfeita. Apesar de não existir um Juizado, tem uma Vara com um juiz sensível e que está atendendo à mulher vítima da violência, cumprindo o prazo que a lei determina. Isso é muito importante.

ESSA questão da ausência de amparo às mulheres vítimas da violência doméstica pode remeter à idéia de que temos uma Constituição machista?
TOTALMENTE, como ainda é. A Constituição continua machista. Muitos juízes, muitas pessoas que ocupam cargo no Poder Judiciário, e muitos delegados, foram criados nessa cultura. Tem que haver uma desconstrução dessa cultura, porque a violência doméstica diminuindo, reflete também na redução na violência urbana.

COMO assim?
VOCÊ precisa ver que muitos jovens não agüentam a violência doméstica e saem de casa. E o retorno desse jovem? Em que condição ele vai retornar para a sociedade? Só Deus sabe.

FOI preciso pressão internacional para que houvesse a prisão do seu agressor. A senhora acha que o machismo prevaleceu esse tempo, 19 anos e seis meses?
O BRASIL foi condenado em 2001, e em 2002 ele foi preso, por pressões internacionais. O machismo existe até hoje. Mas é claro que a gente sabe que nem todos os homens e todas as mulheres são machistas... Mas existem pessoas que ocupam funções importantes e que poderiam estar desconstruindo essa cultura machista, mas, por serem machistas, continuam divulgando e atuando como machista.

A QUE a senhora atribui essa falta de amparo judicial à questão da mulher para que o Brasil fosse condenado somente após a pressão internacional?
EXATAMENTE ao descaso para com a mulher, com as questões da mulher, ou achar correto que o homem pode possuir a mulher como objeto. Isso repete a cultura.

QUANDO a senhora sofreu o primeiro atentado, um tiro pelas costas, seu ex-marido disse que teria sido uma tentativa de assalto. Por quanto tempo essa versão prevaleceu?
OLHE, ela prevaleceu... Passei quatro meses hospitalizada.... Prevaleceu por um período de cinco meses, que foi o tempo que eu precisei sair de casa porque fui mantida em cárcere privada, e a secretaria de polícia terminou a investigação e chegou à conclusão de que ele havia simulado a tentativa de assalto.

E COMO ocorreu a segunda tentativa de assassinato?
FOI no período em que voltei para casa. Foi quando passei uma semana em cárcere privado, e nesse período ele deixou o chuveiro elétrico defeituoso propositadamente, que foi percebido a tempo, e não utilizei o chuveiro.

COMO a senhora se vê hoje, sobrevivente de duas tentativas de assassinato, símbolo de uma lei a favor da mulher?
ACHO que todas as pessoas têm a obrigação de se indignar com o fato. Mas não basta apenas se indignar... Não se manter com os braços cruzados. E foi o que fiz. Não esperei que ninguém resolvesse o meu problema, e tive a sorte de encontrar as pessoas certas nos lugares certos...

DE 1983 a 2006, quando a lei Maria da Penha foi sancionada pelo presidente Lula, passaram 23 anos. Por que foi preciso todo tempo para que houvesse amparo legal às mulheres?
AH, MAS as coisas não acontecem tão de repente. No momento em que o Brasil foi condenado, o governo Fernando Henrique Cardoso não deu apoio ao movimento de mulheres. No meu caso, a OEA enviou três ofícios ao Brasil para o governo se posicionar, e em nenhum momento houve resposta do governo brasileiro. Nós, mulheres, devemos isso ao governo Lula, que criou a Secretaria de Política para as Mulheres e trabalhou essa questão. Uma lei sancionada, aprovada por unanimidade no Congresso Nacional.

ANTES de a sua situação chegar ao limite, como era o convívio com o ex-marido?
NÃO preciso dizer isso a você, mas se você conhece alguma pessoa que é vítima da violência, saberá exatamente. Existe muito tipo de violência doméstica. E a pior é aquela que tem a dupla personalidade, que na frente dos estranhos demonstra ser uma pessoa de valor e na intimidade do lar é extremamente violenta. Toda agressão deixa marca.

A SENHORA tem percorrido o Brasil. As mulheres estão mais conscientes que têm amparo da lei?
ELAS estão mais conscientes e mais mobilizadas, nas suas cidades, para criar mecanismos que a atendam. Embora ainda exista o medo, mas se for criado o centro de referência, elas saberão o que existe a seu favor para que saiam da violência.

HOJE, quem é Maria da Penha?
UMA militante muito preocupada com a causa da mulher, que continua na luta para que a política de enfrentamento da violência contra a mulher seja realmente implantada para que a lei funcione para todas as mulheres, para que essas mulheres não se decepcionem com as instituições, e que essas instituições possam trabalhar e coibir a violência doméstica, e se conscientizem para que a mulher possa ter um porto-seguro. Vivo em função da mulher. Sou aposentada, e todo o meu tempo livre é para atender os movimentos, as instituições que me procuram, repórteres como você. Queria que você mantivesse as mulheres da sua cidade informadas de que existem os mecanismos e elas trabalhassem para a criação desses equipamentos, porque estamos trabalhando para o futuro, para nossos filhos e netos.

Jornal de Fato
23 de março de 2008

Fonte:Coletivo ao ataque

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