Minha lista de blogs

terça-feira, 13 de abril de 2010

A ALQUIMIA DA CURA .

JURACY CANÇADO.Uma curiosa observação do filósofo Karl Jaspers pode ajudar o entendimento de uma das mais intrigantes noções fundamentais da cosmovisão daoísta aplicadas à medicina chinesa: o diálogo Céu-Terra que sustenta a dinâmica da vida e sua correspondência com a interação das duas almas - etérea e corpórea - polarizadoras da atividade psicofísica humana.

Num contexto evidentemente distinto, Jaspers fala de um período da história, compreendido entre 800 e 200 A.C., quando aparece em todas as civilizações uma sabedoria universal revestida por distintas imagens e metáforas peculiares às culturas que lhes serviram de berço. Esse período, a que Jaspers chama de "tempo-eixo", marca a gênese das grandes tradições sapienciais que a história registra: no Oriente nascem o taoísmo, o confucionismo e o budismo; no Ocidente, o zoroastrismo, o judaísmo profético e a filosofia grega.

E isto, ensina Jaspers, não decorre de um lento processo evolutivo, mas de um súbito salto de consciência gerado pelos insights próprios de indivíduos excepcionais - os sábios - e generosamente compartilhado com as culturas a que pertencem. É por meio desse saber autoral que as crenças míticas primitivas de uma civilização transcendem suas limitações grupais e se transmutam em sabedoria. E o caráter de ambos é radicalmente distinto: o que se denomina sabedoria é fruto de uma revelação do alto que acrescenta significado consciente a um saber operativo, mas pré-consciente (um saber instintual que orienta, mas também restringe o comportamento dos seres primitivos e das formas inferiores de vida). Sem a clareza da sabedoria prevalece tão somente o trágico determinismo narrado nas mitologias.

O tempo-eixo, portanto, não registra uma ruptura, mas tampouco resulta de uma mera continuidade evolutiva natural. Marca, de fato, uma passagem, um portal que distingue (mas não separa) os dois pólos daquilo que Aurobindo denominou a Grande Cadeia do Ser: o amplo espectro da realidade e da consciência que hierarquiza os seres e as coisas em níveis de ser e de saber. São esses dois pólos interagentes que as grandes tradições do conhecimento reconhecem como o domínio arquetípico das idéias matriciadoras e a esfera geradora das formas concretas. Na cosmogonia chinesa essas duas determinantes são chamadas respectivamente de Qian (Céu) e Kun (Terra).

O Acasalamento do Céu e da Terra

Na cosmovisão chinesa, toda a vida em exercício resulta dos incessantes enlaçamentos amorosos de Qian e Kun: todas as transformações só se distinguem no nome. Sua tradução por Céu e Terra expressa tão somente o uso dos nomes de cortesia chineses, licença poética para comunicar algo que está além das palavras. São, em essência, os emblemas ativos das duas categorias fundamentais da vida, e comportam igualmente designações diversas como Criativo e Receptivo, Masculino e Feminino, Tempo e Espaço, ou Consciência e Existência. Representam, enfim, o Yang e o Yin do Dao.

De fato, toda manifestação é concebida no Céu: somos filhos das estrelas. É no interior dessas fornalhas colossais que residem os mistérios da transmutação dos elementos que irão forjar a substância do mundo. É ainda desses luminares que emerge a luz que anima e norteia a existência. Na China, o espírito que habita essa dimensão insondável da Ordem e dos Princípios é denominado Shen, o Mensageiro do Céu. É por meio de Shen que o Céu fertiliza a Terra, os seres e as coisas existem pela presença de Shen.

Mas é no centro da Terra que toda a existência se conforma: o Céu chama e a Terra o responde. Aqui, todos os possíveis implicados em Qian, seus traços indícios, suas pegadas irão compor os nomes, as formas, os destinos dos seres individuais. Domínio das matérias-primas e dos produtos maternos, Kun/Terra engendra, informa, conforma, transforma as "concepções permanentes" de Qian/Céu e concretiza a Obra. Seu emblema é a Eficácia.

A Alquimia Interior

Mircea Elíade ensina que as origens da universal alquimia apóiam-se na crença das civilizações míticas numa correspondência entre a geração dos metais nas profundezas da terra e o crescimento dos fetos no ventre das mulheres. O objetivo da arte alquímica é a reprodução acelerada dos mesmos processos que fazem os minérios na terra, em sua lenta evolução, atingir a forma definitiva dos metais. E, meta suprema, apreender os segredos tectônicos da transmutação dos metais impuros na forma incorruptível do ouro - substância nobre, imune às degenerações mundanas, resistente tanto à umidade quanto ao fogo.

Mas, não obstante a sua origem universal nascida com o despertar da consciência humana, a alquimia somente ascende ao nível de uma sabedoria no tempo-eixo de Karl Jaspers. Na China, a confraria dos mineradores e ferreiros cede lugar aos sábios taoístas que imprimem ao Método um sentido mais elevado: agora os propósitos alquímicos são interpretados pela sabedoria do Dao, o vaso alquímico torna-se o próprio corpo do alquimista e o que se almeja não é mais a simples fabricação do ouro vulgar, mas a obtenção do ouro simbólico da perfeição do corpo e do espírito.

É significativo que nessa fase em que aparecem os grandes textos taoístas e confucionistas aproximadamente 350 A.C. tenha surgido o mais antigo clássico de alquimia interna, o Can Tong Qi, obra de grande impacto no desenvolvimento da alquimia em todo o mundo. E, coroando essa época áurea, é escrito o Huang Di Nei Jing, o cânone definitivo da medicina chinesa, composto originalmente dos textos Su Wen (Questões Simples) e Ling Shu (Eixo Espiritual).

A complementaridade dos dois textos é total. O Su Wen apresenta a fascinante fisiologia energética chinesa a partir da ótica do Dao, retratando o funcionamento humano em suas intimas correspondências com as leis que ordenam a natureza e o cosmos. Mas é no Ling Shu que essas leis se revelam enraizadas no poder ordenador do Shen, o Espírito Criativo regente dos intercursos do Céu e da Terra. Ali se ensina que, à semelhança do saber que já se encontra semi-desperto nas entranhas da terra regendo o comportamento involuntário da matéria - O Yang do Yin - o poder organizador do espírito não exatamente encarna, mas acorda no corpo, conferindo complexidade e amplitude a suas funções somáticas e psíquicas.

E assim o Ling Shu descreve o cenário psico-espiritual com uma rica linhagem de símbolos dotados de um surpreendente poder de efetividade. Seu palco de atuação é o espaço do corpo: é na substancialidade dos órgãos internos que os "oficiais do coração-mente" - os doze aspectos escalonados do Shen - têm seus domicílios e sustentam suas funções. Nas palavras de Zhuang Zi, o Céu e a Terra nasceram quando eu nasci, e as dez mil coisas e eu somos Um.

Considerado "místico" nas reformulações contemporâneas ocorridas na República Popular da China, o Ling Shu, com suas provocativas concepções das "almas" do Céu e da Terra descrevendo as interações do corpo e do espírito, foi quase totalmente excluído da versão hegemônica a que se deu o nome de Medicina Tradicional Chinesa (MTC). Mas o esforço investigativo de Larre, Eyssalet, Jarret e outros devotados estudiosos já garantem bons frutos: releituras dos textos censurados vem confirmando que a medicina tradicional chinesa não é apenas um bom conjunto de técnicas operativas, mas uma sabedoria maior aplicada à cura do corpo e da alma
====================================
Veja na Agenda de Eventos do site www.fatimahborges.com.br o Curso de Juracy Cançado. Participe

Nenhum comentário:

Postar um comentário