JURACY CANÇADO.Que fique claro, desde o início, o pleno reconhecimento dos inestimáveis ganhos pessoais e culturais que o processo de assimilação das artes terapêuticas chinesas tem gerado no Ocidente a partir da sua gradativa introdução entre nós em décadas recentes. Particularmente para aqueles que tiveram um convívio participativo com o processo de implantação e popularização dessas práticas em nosso meio é compensador poder constatar que sistemas terapêuticos então considerados frutos de crendices e superstições puderam superar barreiras de interesses e resistentes preconceitos culturais, tornando-se hoje objetos de desejo a até mesmo de reivindicação de posse por parte da própria instituição que antes os enjeitara.
Ironias à parte, o inegável é que a proliferação de escolas de satisfatório nível técnico e o crescente número de profissionais atuantes nessa área tem ampliado significativamente as possibilidades de cuidados com a saúde e melhoria da nossa qualidade de vida. Essa realidade, é justo reconhecer, torna-se possível a partir de uma política externa de abertura que se instala na China desde o começo da década de 70, resultando numa crescente disponibilização de seus produtos culturais.
Vamos às ressalvas. O que se critica é o fato de que o tecnicamente valioso acervo que nos chega com o nome de Medicina Tradicional Chinesa (Chinese Traditional Medicine) resulte de uma reformulação moderna forjada por um Estado autoritário que apequena um sistema de cura fundamentado em um paradigma não-reducionista por excelência, de forma a submetê-lo aos ditames da sua ideologia política e ainda torná-lo compatível com o cientificismo mecanicista das biomedicinas ocidentais. Na avaliação do historiador de medicina Paul Unschuld, considerado uma autoridade na história da medicina chinesa, o sistema resultante exibe fortes traços positivistas e funcionalistas, marcado pelo distanciamento dos seus fundamentos mais legítimos com a exclusão dos clássicos filosóficos que originalmente nortearam suas práticas e a negação de seus preceitos básicos de inspiração daoísta, atribuídos ao misticismo. Fazendo coro com Unschuld, outras vozes respeitáveis como Birch, Flaw e Eyssalet tem insistido na urgente necessidade de uma atenta releitura dessas fontes.
Partindo da sua tese de doutorado desenvolvida junto ao projeto "Linha de Pesquisa- Racionalidades Médicas", na UFRJ (o antropólogo a acupunturista Dennis Linhares Barsted), compara os cânones da medicina clássica chinesa com suas versões atualmente disponíveis em chinês "simplificado" pós-reforma ortográfica. Barsted destaca, entre as questões e temas censurados, a exclusão sumária do principal conteúdo filosófico que fundamenta e dá significado a esta tradição de cura: a analogia entre a teoria da criação na cosmologia daoísta e o processo de geração da vitalidade no corpo humano. Deste expurgo resulta uma perceptível inconcruência : embora praticamente todos os livros de iniciação à acupuntura publicados no Ocidente e na China contemporânea comecem com referências à cosmologia chinesa, o enfoque, quase sempre superficial, raramente aponta para as relações radicais entre esta cosmogonia e as teorias e práticas próprias da medicina chinesa.
Tais mutilações sofridas no próprio berço pressagiam um destino preocupante para a Medicina Tradicional Chinesa nos tempos atuais. Apartada dos seus fundamentos essenciais essa tradição terapêutica perde a identidade original e se transfigura, arriscando-se a tornar-se um mero coadjuvante, uma "especialidade" da hegemônica biomedicina ocidental.
Assim na Terra como no Céu
Ao submeter-se aos padrões reducionistas da "medicina científica" - um paradigma reconhecidamente em dissolução ante os avanços da física de vanguarda - a medicina clássica chinesa deixa-se impregnar por um abusivo racionalismo, visível nas esquemáticas classificações de síndromes e na mecanização das suas práticas. Esta "alopatização" imposta já mostra perdas significativas: a maioria dos textos chineses mais modernos negligenciam os aspectos mentais dos órgãos-meridianos ou, quando muito, apresentam descrições deturpadas baseadas na psicologia ocidental. Uma ocorrência lamentável, visto que um grande diferencial do modelo médico chinês encontra-se em sua vertente psicológica marcamente visceral, que exalta a ação terapêutica do Espírito através dos seus distintos aspectos domiciliados nos órgãos físicos que lhes dão suporte material. Na psicofisiologia chinesa o sistema dos órgãos internos (Zang Fu) e a rede de Vasos e Meridianos (Jing Luo) integram um amplo espectro onde o complexo meridiano-órgão-função agrupa um conjunto de atividades solidárias que incluem a função fisiológica, um naipe de expressões emocionais, disposições mentais e sociais e qualidades espirituais.
Quando Marcel Granet, em seu clássico "O Pensamento Chinês", afirma que "é gerada na China uma sabedoria independente e totalmente humana sem Lei e sem Deus", ele em seguida esclarece que ali religião e direito não são funções diferenciadas da atividade social. De fato, a norteadora espiritualidade chinesa, tal qual sua operante "filosofia em ação", só tem legitimidade quando aplicada e verificada nas ações humanas. Ou, como sintetiza o dito daoísta: a Terra é testemunha do Céu.
E é isto que se reivindica: uma aproximação com o pensamento e com a linguagem herdados de uma época e de uma cultura que deram expressão a uma sabedoria iluminante e fortemente marcada pela efetividade. É somente a partir desse diálogo cuidadoso que o conhecimento moderno pode almejar uma aliança saudável e criativa com o saber tradicional, livre de fusões promíscuas e apropriações indevidas.
Mas não trata-se de uma queixa. Mesmo porque tal tarefa, hoje, certamente deverá caber menos ao chinês do que ao ocidental contemporâneo contemplado com a herança.
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terça-feira, 13 de abril de 2010
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