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terça-feira, 13 de abril de 2010

O PENSAR E O SENTIR NA CHINA ANTIGA.

JURACY CANÇADO.Em seu clássico "O Pensamento Chinês", Marcel Granet conta uma pequena história cujo desfecho desconcertante ilustra bem a peculiaridade do modo de pensar que deu forma à fascinante sabedoria gerada na China Antiga. Segunda a narrativa, onze generais se reúnem para decidir o destino de uma imprevisível batalha. Após uma longa discussão estratégica, não havendo consenso quanto à conveniência de atacar ou bater em retirada, partem para uma votação: três generais votam pelo ataque e os outros pela retirada. Decidem então atacar, já que três é o número da unanimidade - da síntese que concilia uma contradição. Assim, eles atacam e são vitoriosos, conforme a historieta.

Ante ao argumento lógico de que tal conclusão é inteiramente descabida, um chinês argumentaria que, de fato, houve unanimidade a favor do ataque: três pessoas concordaram conscientemente, e os outros oito, apenas inconscientemente (Poder-se-ia acrescentar que estes últimos, num ato falho invertido, acabaram por confirmar inconscientemente aquilo que seu consciente ainda não percebera!).

Se, apesar da acrobacia interpretativa, você continua achando que se trata no fundo de uma ideia bastante maluca, é conveniente considerar que foi com essa estranha modalidade de pensamento que os chineses construíram a civilização monumental que desde Marco Pólo nunca deixou de fascinar e perturbar o Ocidente.
O fato é que, na China, o número tem uma função classificatória: antes de quantificar ele serve como qualificador de realidades e experiências de vida. É claro que os chineses usam os números para contar e medir quantidades, mas essa é apenas sua função secundária. À maneira dos seus outros símbolos, ideogramas e demais categorias teóricas, os números informam à mente chinesa acerca de um momento no tempo - o momento um, o momento dois, o momento três - e seus significados. Mais precisamente, o número se refere à qualidades específicas dos tempos e lugares na relação com o sentimento de quem os percebe.

Ao dizer "tudo que agora sinto está em mim pensando", Fernando Pessoa faz uma síntese poética da indissolúvel ressonância que se opera entre o sentir e o pensar no coração e na mente do homem. Mas, como o Yin e o Yang, estes opostos configuram diferentes aspectos de um mesmo e único fenômeno. Na percepção humana a razão é a função quantificadora que verifica, pesa e dá forma ao sentimento. Este, contudo, prossegue sendo o conteúdo legítimo, a qualidade primária da natureza íntima daquele que percebe. E sentimentos não são pretos e brancos, como a razão: são coloridos, têm nuanças como um arco-íris.

Por isso os símbolos e emblemas chineses não se prestam à precisão das definições de dicionários. Sua serventia está em associar os matizes de uma situação às nuanças do espectro dos sentimentos.

Um Pensamento Sincronístico

Quando Carl Jung conheceu o modo clássico de pensar na China, chamou-o de pensamento "sincronístico". É essa, reconheceu ele, a atitude mental requerida ao se buscar descrever a realidade intemporal e não localizada que serve de fonte e de tela de fundo para o efêmero constelar dos fenômenos no espaço-tempo. A esse domínio subjacente que Jung chamou de arquetípico, os chineses deram o nome de Céu Anterior, a contra-parte perene da realidade vinculada ao tempo do Céu Posterior.

No âmbito humano o Céu Anterior representa o mundo interior das qualidades informes: anseios, aspirações, motivações e sentimentos. No plano microfísico se assemelha às dimensões recém descobertas pela física de vanguarda - o universo quântico das probabilidades de ocorrência. Em razão dessas similitudes Niels Bohr concluiu que o chinês pensa "em campos", de forma bem próxima ao modo de pensar dos físicos modernos.

A ironia está no fato de que esta maneira tão atual (e, paradoxalmente, tão antiga) de pensar o mundo e a experiência humana seja o grande obstáculo para o diálogo saudável que se pretende entre o Ocidente e a cultura chinesa nos tempos atuais. O melhor exemplo dessa contradição pode ser encontrado ao longo dos caminhos de expansão da medicina clássica chinesa em nossos domínios.

Sua rápida popularização e o meticuloso conhecimento técnico de seus métodos terapêuticos por um número crescente de praticantes fazem um contraste chocante com o escasso entendimento acerca de modus operandi e dos paradigmas que norteiam essas práticas. Tal assimetria deixa um bom número de profissionais tecnicamente bem equipados com um incômodo sentimento de não saber exatamente o que está fazendo.

Em seu livro "Que é a Acupuntura", uma das primeiras obras sobre o tema no Ocidente, David Sussmann já antevia o problema com uma advertência: "Ou a acupuntura - e, por extensão, todo o universo das artes terapêuticas chinesas - será entendida a partir da sua gênese, ou nunca o será". Uma exigência bastante oportuna para estes tempos de exuberância tecnicista e indigência de espírito em que vivemos.
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