O gato nosso de cada dia
“Todo gato é uma esfinge. Porém, com a nossa cara. Ou: todo aquele que não se decifra e portanto se devora odeia gatos. O espelho, é claro, só devolve a própria face”
“Um dia, um gato”. Décadas faz, jamais me esqueci deste filme tcheco. O protagonista, um rajadinho acinzentado, este arquétipo de todos os gatos do mundo – enxergava os humanos exatamente como cada qual era. Clarividência pura. A alma de cada criatura desnudava-se ao vivo e em cores, literalmente, sob o foco do olhar felino.
O gato então sabendo do homem o que o homem não sabe de si: que ele brinca de gato e rato consigo mesmo, pois que nosso consciente – o tempo inteiro – tudo escamoteia. Afinal, quem se atreve a ser a ratoeira de si? No filme, então, assim como na vida, um desconcertante desvendamento. Mas da alma do gato ou da alma do homem?
Todo gato é uma esfinge. Porém, com a nossa cara. Ou: todo aquele que não se decifra e portanto se devora odeia gatos. O espelho, é claro, só devolve a própria face.
O gato se espalha em nosso espaço como um estigma. O olhar felino é o álibi daqueles que dão conta de si, mas, também, o setenciamento dos mal-resolvidos. Porque o gato nos interroga: “Acaso sabes dos teus domínios e dos teus limites? Acaso te esticas em teus sonhos e – de barriga para cima – te entregas aos teus sóis? Acaso, ao te lavares, te livras dos ratos que cultivas em ti? Tua língua te purifica ou te envenena?”
O verbo do gato é o ronronar no côncavo e no convexo do espreguiçamento largo, do roçar em nossas pernas – em reverência e aceitação. Apesar de. (Seríamos dignos de afeto?). Se palavra fosse, a frase seria: “Acaso te mereces?“. O ensinamento de todo gato é sempre um susto. Um estado de suspensão de nossa empáfia. Posso ser eu a esfinge. E sou. Não é à toa, portanto, que os gatos causem tanta aversão aos prepotentes. Estes ratos.
O gato é radical. Não sucumbe a meias-verdades. Ele nos encara e – cara-a-cara com o olhar piscante e oblíquo – nos cobra: “És capaz de ti ?“. O gato reitera a nossa míngua.
Nenhum gato é por acaso. Afetos e desafetos também não. Caso teu destino seja pautado pela presença de gatos – no teu sim ou no teu não – a chave é só tua. O gato é apenas a sinalização do teu inconsciente miando: “Destranca-te para ti mesmo”. Este pulo do gato.
O gato não faz concessão. E dedica a todos os humanos peçonhentos o mais solene desprezo. Assim: “Ando suspeitando de gente. Desacreditando. Desamando. Onde o próximo veneno?” Gatos sabem de cor esta via-crúcis – ancestralmente; mas também intuem o caminho mais curto até os límpidos de espírito. És?
Portanto, caso algum gato te adote como gente-de-estimação – esta redentora deferência – ele estará celebrando a tua luz. E, na mais terna empatia – fascínio em mão dupla – pendurará em ti a própria alma. Um anjo-da-guarda sendo.
terça-feira, 13 de abril de 2010
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